Decidir se vamos compartilhar nossa experiência após um abuso é uma escolha profundamente pessoal. Escolher se, como e com quem contar pode ser um passo importante no processo de recuperação. Falar sobre o que aconteceu pode nos trazer alívio, oferecer um espaço seguro para expressar nossos sentimentos, nos lembrar de que não estamos sós e nos ajudar a refletir e retomar o controle da nossa própria história. Este guia apresenta alguns fatores importantes a considerar, ajudando-nos a tomar a decisão que parecer certa para nós.
Ler sobre abuso pode trazer à tona sentimentos difíceis ou gatilhos, então vá no seu próprio ritmo. Faça pausas se precisar. Este guia estará sempre aqui, para quando e se você precisar. Se você sentir necessidade de se ancorar no presente, temos vários exercícios de aterramento no Bloom.
Agradecemos o uso dos seguintes recursos na criação deste guia:
RAINN: Contando aos entes queridos sobre abuso sexual
Por que muitas pessoas não falam sobre eventos traumáticos até muito tempo depois de acontecerem
Tempo de leitura: 30 minutos
Última atualização: Abril de 2025
É normal não contar a alguém.
Não devemos a ninguém nossa história de agressão ou abuso. É totalmente válido optar por não contar a ninguém ou decidir não compartilhar com uma pessoa em particular. Há muitos motivos pelos quais podemos fazer essa escolha. O que mais importa é priorizar nossa própria jornada de cura de uma forma que pareça adequada para nós.
Não há problema em contar a alguém.
Um amigo de confiança, um membro da família, um conselheiro ou uma figura de autoridade — cabe a nós decidir com quem compartilhar nossa história. Contar a alguém pode ser uma boa maneira de nos libertarmos, pode nos dar um lugar seguro para chorar, nos ajudar a nos sentirmos menos sozinhos ou pode ser um passo para ganhar mais controle sobre nossa história. A coisa mais importante a considerar é o que nos deixa mais confortáveis e o que nos ajudará a nos curar.
O registro no diário pode ser uma ferramenta poderosa para refletir sobre por que queremos compartilhar, com quem e quais são nossas esperanças ou medos. Também pode nos ajudar a organizar nossos pensamentos, processar nossas emoções e obter clareza. Tudo o que você precisa para começar é uma caneta e papel ou um telefone, laptop ou tablet.
Revisite sua escrita. Com o tempo, ler nossos diários pode nos ajudar a entender nossos pensamentos e decidir como e se queremos compartilhar.
Escolher para quem contar pode ser uma decisão difícil, e não existe uma resposta única. Todas nós queremos e merecemos nos sentir em segurança e termos nossas histórias compreendidas ao compartilhar algo tão íntimo. Devemos pensar no que queremos ao contar sobre nossa experiência, e tentar encontrar alguém que possa nos oferecer o tipo de apoio que precisamos — seja um ombro amigo, ou suporte em um processo de denúncia.
Escolher com quem contar pode exigir uma reflexão sobre as pessoas ao nosso redor e os tipos de relação que temos com elas. Aqui estão algumas perguntas que podem ajudar:
Se estivermos em dúvida sobre com quem contar, o exercício de mapeamento de confiança (Trust Mapping) pode ser útil. É uma atividade prática que nos ajuda a pensar em quem confiamos em nossas vidas — e como a confiança é algo dinâmico, que pode mudar à medida que nós e nossas relações mudam.
Você também pode encontrar esse exercício na sessão “Contar a alguém sobre o abuso”, no nosso curso Sociedade, patriarcado e trauma sexual.
Às vezes, pessoas próximas reagem de maneira emocional ao ouvirem sobre nossa dor. Essas reações podem estar motivadas por sentimentos de impotência ou culpa — ficam com raiva de que isso tenha acontecido conosco, e talvez pensem que poderiam ter impedido. É importante lembrar que não temos a obrigação de gerenciar as emoções de ninguém. Contar a alguém é sobre nós: sobre o que precisamos...
Nem todo mundo vai reagir da forma como esperamos ou gostaríamos. Algumas pessoas podem não acreditar no que vivemos ou discordar de que foi uma situação de abuso. Se conhecem quem nos agrediu e/ou abusou, podem até tomar partido, sair em defesa ou se recusar a mudar sua forma de interagir com a pessoa agressora.
É essencial lembrar que não é nossa culpa se alguém não acredita na gente. Não podemos controlar como as pessoas reagem ao nosso trauma. Isso não significa que contamos da forma errada e, certamente, não invalida nossa experiência.
Por isso é tão importante pensar em com quem nos sentimos em segurança para compartilhar. Merecemos receber apoio e que acreditem em nós. Às vezes escolhemos contar para certas pessoas não porque esperamos que elas tomem alguma atitude ou nos entendam totalmente, mas apenas para aliviar o peso de carregar a dor do acontecido. Outras vezes, confiamos em pessoas — como amigas próximas, familiares ou membros da comunidade — com a esperança de que apoiem ativamente nossa processo de recuperação. Ter expectativas realistas sobre como alguém pode reagir pode ajudar a nos proteger de mais dor ou decepção.
Para muitas pessoas, fatores culturais influenciam na decisão de com quem contar. Sabemos que diferentes culturas vêem o abuso de formas diferentes. Em sociedades patriarcais, a culpa pode recair sobre quem sofreu o abuso, e não sobre a pessoa que cometeu a agressão e/ou abuso). Esse medo de estigma ou julgamento pode tornar ainda mais difícil falar.
Mas é importante lembrar que nem todo mundo na nossa comunidade compartilha essas crenças prejudiciais. Encontrar alguém em quem confiamos — alguém cujos valores estejam alinhados com nossa segurança e bem-estar — pode fazer toda a diferença, especialmente ao navegar por pressões culturais.
Um dos maiores medos ao contar nossa história é perder o controle sobre ela — existe a possibilidade de que a informação se espalhe de maneiras que não planejamos. Esses riscos podem tornar o ato de compartilhar ainda mais assustador.
Mas nós temos controle — sobre quando, como e quanto vamos contar, mesmo que nos perguntem diretamente. Está tudo bem começar aos poucos, testar a confiança, e contar apenas o que parecer seguro. Dar um passo de cada vez pode nos ajudar a sentir mais controle e preparo emocional.
Ao decidir com quem compartilhar nossa experiência, é importante considerar quem parece seguro para confiar, por que queremos contar, e que tipo de apoio esperamos receber. Por exemplo:
Também é importante saber que podem existir implicações legais ao decidir contar sobre um abuso, especialmente se formos menores de 18 anos ou maiores de 65. Em alguns países, pessoas em determinadas profissões têm obrigação legal de denunciar comportamentos ilegais ou perigosos — mesmo que o abuso tenha ocorrido há muito tempo.
Isso se aplica a professores/as, médicas e médicos, assistentes sociais, entre outros/as, que podem ter a obrigação por lei de denunciar, especialmente se o/a agressor/a ainda estiver em posição de prejudicar alguém. Isso é chamado de denúncia obrigatória.
Se isso for uma preocupação, pode ser útil se informar sobre as exigências legais antes de compartilhar com alguém nessa posição.
Contar a alguém é uma decisão profundamente pessoal. Merecemos compartilhar nossa história nos nossos próprios termos, com pessoas que vão honrar e respeitar nossa verdade.
Se decidimos que queremos compartilhar, talvez fiquemos em dúvida sobre qual seria o momento certo. Aqui vão algumas perguntas que podem ajudar a entender como estamos nos sentindo e se estamos preparadas/os para compartilhar nossa história:
Se nos sentimos em segurança, no controle e com vontade de falar, pode ser que estejamos preparadas e preparados para conversar com alguém. Mas se não nos sentimos em segurança, ou se achamos que isso pode ser re-traumatizante, talvez precisemos de mais tempo antes de compartilhar. Talvez ainda não seja o momento, e tudo bem.
Essas conversas também podem surgir de forma espontânea, mesmo que não estejamos 100% preparadas e preparados. Quando isso acontecer, podemos usar nosso bom senso para decidir se queremos continuar. Também pode haver momentos em que nos sentimos pressionadas/os a contar antes de estarmos prontas/os, ou com alguém que não nos sentimos à vontade.
É importante lembrar: não devemos nossa história a ninguém, e está tudo bem voltar ao assunto mais tarde, quando sentirmos que é o momento mais adequado. Podemos dizer algo como: “Isso é algo que não me sinto confortável em conversar agora. Podemos falar de outra coisa, por favor?”
Se sentirmos incerteza, mas acharmos que pode ser o momento certo, podemos mencionar o assunto de forma suave e observar como a outra pessoa reage. Se a reação não for acolhedora ou se nos sentirmos desconfortáveis, está tudo bem parar e retomar outro dia.
Não existe um tempo certo — somos nós que decidimos quando, como e com quem compartilhar nossa história.
Infelizmente, há situações em que nossa experiência é compartilhada sem nosso consentimento, como em escolas, locais de trabalho ou espaços religiosos. Isso pode ser traumático e opressor, especialmente se não nos sentimos prontas e prontos para falar ou não nos sentimos confortáveis em compartilhar com a pessoa envolvida. Se isso acontecer, podemos tentar afirmar nossos limites — deixar claro que não escolhemos dividir nossa experiência e que não estamos nos sentindo prontas e prontos para conversar ou agir sobre isso. Se tudo parecer fora de controle, está tudo bem se afastar e focar no autocuidado. Você pode visitar nossa sessão de autocuidado para estratégias de apoio.
Qual é o meio mais adequado para a nossa conversa?
Conversas podem acontecer de várias formas diferentes. O mais importante é encontrar o meio que funcione melhor para nós.
Às vezes, queremos que as pessoas conheçam nossa história, mas não queremos que saibam que é nossa.
Há muitas formas pelas quais sobreviventes encontraram justiça pessoal de maneira anônima. No México, sobreviventes de violência criaram “muros da vergonha”, onde escrevem suas experiências junto com o nome da(s) pessoa(s) responsável(is). No Paquistão, estudantes de uma escola preparatória usaram as redes sociais para relatar abusos cometidos por professores. Em várias partes do mundo, sobreviventes entram em contato com jornalistas para contar suas histórias e pedem que elas sejam tornadas públicas em seu nome.
Dependendo da nossa situação, manter o anonimato pode ser a opção mais segura — mas é importante tomarmos cuidado para proteger nossa identidade. Para mais informações sobre como se manter seguro online, consulte o recurso de segurança digital da Chayn: DIY Online Safety.
Permanecer em anonimato também pode ser importante se estivermos seguindo com ações legais. Já houve casos em que a prática de “expor o agressor” dificultou o processo judicial.
Se você já fez uma denúncia e se sente confortável, vale a pena entrar em contato com a instituição à qual você denunciou para ter certeza de que está tomando uma decisão informada antes de compartilhar sua história de forma mais ampla.
Compartilhar por escrito — seja por e-mail, carta manuscrita ou mensagem — pode ser uma forma poderosa de contar nossa história. Nos permite tomar nosso tempo, escolher com cuidado as palavras e nos expressar sem a pressão de uma reação imediata.
Também cria um registro escrito, que pode ser útil para nossa reflexão ou como documentação, caso precisemos no futuro. Se estamos entrando em contato com alguém para pedir apoio, uma carta dá espaço para que essa pessoa processe o que compartilhamos antes de responder.
No entanto, há algumas coisas a considerar:
Se falar pessoalmente parecer algo avassalador, uma ligação telefônica pode ser um meio-termo confortável. Permite que tenhamos uma conversa privada mantendo certa distância, o que pode nos ajudar a nos sentir em mais segurança e no controle. Podemos escolher quando e onde ligar, garantindo que estejamos no espaço mais confortável possível.
Aqui vão algumas considerações antes de fazer uma ligação:
Podemos decidir que falar pessoalmente é a melhor opção. Isso permite uma conexão mais profunda, ajuda a outra pessoa a entender nossas emoções e nos dá a chance de observar sua reação em tempo real.
Aqui vão algumas coisas para pensar antes de ter uma conversa presencial:
Depois de escolhermos a pessoa certa e o lugar certo, podemos chamá-la para conversar sem dar detalhes imediatamente. Uma mensagem simples como: “Tenho algo importante que gostaria de conversar com você. Você estará disponível amanhã à noite?” já é suficiente. Escolher o momento e o ambiente que nos fazem sentir mais confortáveis é essencial — nós merecemos ter essa conversa nos nossos próprios termos.
Se decidimos compartilhar nossa história com alguém — ou mesmo se ainda estamos pensando sobre isso — pode ser útil nos prepararmos com antecedência. Pensar sobre o que esperamos alcançar ao contar nossa história e como queremos nos sentir depois disso pode nos ajudar a decidir o que dizer a uma pessoa específica.
Por exemplo, se estamos contando a uma parceria romântica, talvez queiramos focar nos impactos da nossa experiência na nossa capacidade e desejo de intimidade. Não é necessário entrar em todos os detalhes do que aconteceu. Podemos tentar algo como: “Ainda não estou pronta para falar sobre isso com muitos detalhes, mas quero que saiba que não gosto de fazer ____ e prefiro ____.” Há uma sessão sobre sexualidade após abuso sexual no nosso curso Bloom Apoiando o processo de recuperação de traumas sexuais, que você pode acessar aqui.
Se estivermos conversando com colegas de trabalho porque usaram uma linguagem que nos disparou gatilhos, talvez queiramos expressar como nos sentimos com base em nossas experiências e mostrar como as palavras deles nos afetam.
Quando contamos nossa história, é normal termos uma ideia de como gostaríamos que a conversa acontecesse. Queremos que acreditem em nós e receber apoio. Embora não possamos prever exatamente o que vai acontecer, podemos tentar nos preparar.
Algumas pessoas podem fazer muitas perguntas ou dar opiniões. É importante lembrar que perguntas nem sempre são sinal de desrespeito — às vezes, as pessoas não sabem como reagir. Se alguém fizer uma pergunta que nos deixe desconfortáveis, podemos dizer algo como:
“Essa pergunta me deixa desconfortável/triste.” ou “Não sei como responder a isso, você pode me dar um momento?”
A pessoa para quem estamos contando pode ter uma resposta negativa — pode, por exemplo, ficar irritada ou nos culpar pelo que aconteceu. Se isso acontecer, não é nossa culpa. Não é nossa responsabilidade controlar as reações dos outros. Se recebermos uma resposta sem apoio, podemos decidir encerrar a conversa.
Contar nossa história nem sempre é fácil — às vezes podemos querer mudar de ideia. E tudo bem. Podemos pensar sobre o que fazer caso, naquele momento, decidamos que não queremos mais falar sobre isso. Podemos praticar uma frase simples como: “Mudei de ideia e não quero mais falar sobre isso.”
Talvez também queiramos uma pausa, um momento para organizar nossos pensamentos antes de continuar. Dizer algo como: “Preciso de um momento, você pode me contar como foi seu dia?” pode tornar a situação mais leve. E quando estivermos prontos para continuar, podemos comunicar isso.
Também é possível pensar numa estratégia de saída: como encerrar a conversa e o que fazer depois. Podemos pensar se vamos querer passar um tempo com a pessoa com quem conversamos, ou se preferimos ficar sozinhas(os) depois. A seção de autocuidado deste guia traz mais detalhes sobre isso. É totalmente aceitável mudar de ideia a qualquer momento. Por exemplo: “Acho que não tenho energia para sair hoje, você se importaria de ficar comigo/em me deixar um tempo sozinha(o)?”
Encerre a conversa em nossos termos. Se necessário, redirecione a discussão ou peça ajuda para sair da situação. Por exemplo: “Não posso mais falar sobre isso, mas preciso do seu apoio para deixar esse espaço.”
Depois de termos a conversa, talvez precisemos de um tempo para processar os sentimentos que surgiram ao compartilhar. Podemos sentir alívio, validação, exaustão ou incerteza. Qualquer que seja o sentimento, ele é válido. O processo de cura não é linear, e cuidar de nós depois de compartilhar é tão importante quanto a própria decisão de contar.
Aqui estão algumas formas de nos cuidarmos depois da conversa. Pode ser que precisemos disso algumas horas, dias ou até meses depois. O que for necessário, está tudo certo.
Acima de tudo: colocar-se em primeiro lugar não é egoísmo. Cuidar do nosso bem-estar não é só sobre curar o passado, é sobre criar espaço para nós no presente e no futuro. Ao nutrir nosso espírito e bem-estar ativamente, abrimos espaço em nossas vidas para o apoio de outras pessoas, e o mais importante, para nós.